A “névoa mental” é uma das queixas mais comuns e persistentes em pacientes com covid-19 longa. O sintoma afeta até 46% dos pacientes que também manifestam outros problemas cognitivos, como perda de memória e dificuldade de concentração.
Um novo estudo identificou que estes sintomas podem ser resultado de lesão cerebral secundária à infecção, o que pode causar problemas cognitivos e de saúde mental prolongados.
Os pesquisadores constataram que 351 pacientes hospitalizados com a forma grave da covid-19 apresentaram evidências de lesão cerebral de longa duração um ano após a infecção pelo SARS-CoV-2. Os achados foram baseados em uma série de testes cognitivos, sintomas autorrelatados, exames de imagem do sistema nervoso central e biomarcadores.
Déficits neurológicos equivalem a 20 anos de envelhecimento cerebral
Como parte do estudo publicado antes da revisão por pares, os participantes realizaram um teste de cognição e tiveram suas pontuações pareadas às de indivíduos com idades semelhantes, mas que não apresentaram quadro grave de covid-19. Em seguida, foi colhida uma amostra de sangue para analisar se havia biomarcadores específicos; a avaliação mostrou que níveis elevados de certos biomarcadores indicavam lesão cerebral. Utilizando exames de imagem do sistema nervoso central, os pesquisadores também identificaram que certas áreas do cérebro associadas à atenção tiveram seu volume reduzido.
Os participantes foram “menos precisos e mais lentos” em termos cognitivos e apresentavam ao menos uma doença psiquiátrica, como transtorno depressivo, transtorno de ansiedade ou transtorno de estresse pós-traumático, segundo os pesquisadores.
Os déficits neurológicos encontrados em pacientes com covid-19 foram equivalentes aos observados em indivíduos com 20 anos de envelhecimento cerebral. Os dados corroboram o que os médicos temiam: o SARS-CoV-2 pode danificar o cérebro, provocando problemas contínuos de saúde mental.
“Encontramos déficits globais na cognição”, afirmou o primeiro autor do estudo, Dr. Benedict Michael, Ph.D., diretor no Infection Neuroscience Lab da University of Liverpool, na Inglaterra. “Os problemas cognitivos e de memória dos quais os pacientes se queixaram foram associados a alterações neuroanatômicas no cérebro.”
Prova de que os sintomas não são ‘fruto da imaginação’ dos pacientes
Os déficits cognitivos foram comuns em todos os indivíduos, e os pesquisadores explicaram que ainda não sabem se os danos cerebrais provocaram declínio cognitivo permanente. Porém, a pesquisa provou que, embora muitas vezes ignorados pelos médicos, os problemas de saúde analisados não são fruto da imaginação dos pacientes, contextualizou a Dra. Karla L. Thompson, Ph.D., neuropsicóloga-chefe na University of North Carolina School of Medicine’s COVID Recovery Clinic, nos Estados Unidos.
“Embora a pandemia já esteja em curso há alguns anos, ainda há muitos profissionais de saúde que não acreditam que seus pacientes apresentam estes sintomas residuais”, observou ela. “É por isso que a utilização de biomarcadores é importante, porque fornece uma indicação objetiva de que o cérebro foi comprometido de alguma forma.”
Alguns pacientes com covid-19 longa relataram que fazer com que seus médicos acreditassem que apresentavam uma doença orgânica foi um problema recorrente durante a pandemia, especialmente em relação ao conjunto por vezes vago de sintomas associados à “névoa mental”. Um estudo evidenciou que até 79% dos entrevistados relataram interações negativas com profissionais de saúde quando procuraram tratamento para os sintomas de covid-19 longa.
Como acontecem as lesões cerebrais relacionadas à covid-19?
Os pesquisadores não têm certeza do que está causando essas lesões cerebrais, embora tenham identificado algumas pistas. Pesquisas anteriores sugeriram que tais lesões podem ser resultado da falta de oxigênio no cérebro, especialmente em pacientes previamente hospitalizados (como os deste estudo) e submetidos à ventilação mecânica.
Exames de imagem do sistema nervoso central já haviam demonstrado atrofia da substância cinzenta em pacientes com covid-19, provavelmente causada mais pela inflamação decorrente de uma intensa resposta imune do que pelo vírus. Essa resposta inflamatória é o que parece afetar o sistema nervoso central. Como parte do novo estudo, os pesquisadores encontraram alguns efeitos neuroprotetores do uso de esteroides para reduzir a inflamação cerebral durante a hospitalização.
Os resultados sugerem que os médicos devem superar o ceticismo e considerar a possibilidade de os pacientes terem realmente sofrido uma lesão cerebral e precisarem de tratamento adequado, propôs o Dr. James C. Jackson, doutor em psicologia e neuropsicólogo na Vanderbilt University School of Medicine. “O velho ditado diz que, se tem focinho de porco, rabo de porco e orelha de porco, só pode ser um porco”, afirmou.
Ele observou que os tratamentos utilizados para pacientes com lesões cerebrais também se mostraram eficazes no combate aos sintomas de “névoa mental” na covid-19 longa, ou seja, podem ser utilizadas modalidades como terapia ocupacional, cognitiva e fonoaudiológica, bem como consultas com um neuropsiquiatra para o tratamento de problemas de saúde mental relacionados.
Temor de repercussões em longo prazo
Tratar a “névoa mental” da covid-19 longa como uma lesão cerebral pode auxiliar os pacientes a retornar a algum indício de normalidade, afirmaram os pesquisadores. “O que estamos vendo em termos de biomarcadores de lesões cerebrais e diferenças nos exames de imagem do sistema nervoso central se correlaciona com problemas reais com os quais esses pacientes lidam diariamente”, disse o Dr. James. Ele se referia a dificuldades enfrentadas por esses indivíduos na rotina diária cheia de tarefas, que exigem que as pessoas se lembrem de detalhes, cumpram prazos, sintetizem grandes quantidades de informação e mantenham o foco em determinadas ações.
Existe também o receio de que, mesmo com tratamento, o envelhecimento cerebral causado pelo vírus possa ter repercussões em longo prazo e que esta lesão duradoura possa levar ao início precoce de demência e doença de Alzheimer em indivíduos vulneráveis a essas doenças. Um estudo do National Institute of Neurological Disorders and Stroke (NINDS) descreveu que, em indivíduos que já apresentavam demência e contraíram covid-19, o vírus “acelerou rapidamente a deterioração estrutural e funcional do cérebro”.
“Já sabemos o papel que a neuroinflamação tem no cérebro dos pacientes com doença de Alzheimer”, afirmou a Dra. Karla. “Se a covid-19 longa estiver envolvida na inflamação cerebral duradoura, isso ajuda muito a explicar o mecanismo subjacente ao envelhecimento cerebral [relatado pelo estudo].”
Muito a aprender
De certa forma, este estudo levanta quase tantas perguntas quanto respostas. Embora forneça evidências concretas sobre os danos cerebrais que o vírus causa em pacientes com a forma grave da covid-19, os pesquisadores não sabem qual pode ser o impacto da infecção sobre pessoas com as formas menos graves da doença aguda.
Para o Dr. Ziyad Al-Aly, médico e chefe de pesquisa e desenvolvimento do Veterans Affairs St. Louis Health Care System, nos EUA, a preocupação é de que alguns pacientes com covid-19 longa possam ter déficits cognitivos mais sutis, porém ainda impactantes sobre seus cotidianos, e que possam não estar recebendo a assistência de que necessitam.
Além disso, continuou ele, não está claro se os impactos dos danos cerebrais são permanentes ou se há como impedir que os prejuízos sejam mais graves. Pesquisadores e médicos precisam compreender melhor o mecanismo que permite que o vírus entre no cérebro e cause danos estruturais. Se for inflamação, antivirais ou anti-inflamatórios funcionarão para preveni-la? Os esteroides ajudarão a atenuar esses problemas? “É fundamental que encontremos algumas respostas”, assinalou ele.
“O SARS-CoV-2 vai permanecer entre nós. Ele continuará a infectar a população, por isso, se este é realmente um vírus que danifica o cérebro em longo prazo ou permanentemente, precisamos descobrir o que pode ser feito para detê-lo”, finalizou.
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape
Fonte: Sara Novak – 19 de fevereiro de 2024